Artigo 13/11/2023

Retórica e realidade em ESG: entre o essencial e o periférico

Por Carlos Netto e Simone Monteiro*

Um dos maiores desafios da gestão é saber separar o essencial daquilo que é periférico. Há quem, pela dificuldade em lidar com os desafios e demandas do essencial, trate do periférico com um status de priorização que ele não possui. Ser socialmente consciente e sustentável não admite escapes. A biosfera não apresenta capacidade infinita de absorver o crescente impacto econômico. A realidade se impõe e cobra a conta. É preciso evoluir para novos paradigmas de produção e desenvolvimento, onde emerge a transição para economia de baixo carbono como tema central. ESG que não reflete esse movimento se perde no labirinto das ilusões, acumulando iniciativas ocas e sem impacto significativo na construção de uma nova ordem que integre economia e ecologia.

Um dos mais evidentes sinais desse movimento de escape é a retórica fraturada da realidade. A baixa integridade de relatórios corporativos é um dos efeitos desse mal. Há quem acredite que toda palavra pode produzir realidade. Na palavra não cabe tudo. Para o seu próprio bem, ela não é unidirecional e enseja o contraditório. A palavra se depara com a percepção de outros agentes no processo de comunicação. As estruturas de regulação, formadores de opinião e stakeholders compõem, entre outros, um ecossistema relevante de agentes ativos, confrontando retórica e realidade.

Pesquisa realizada pela Harris Poll, em 2022, com 1.500 CEOs de grandes empresas, com mais de 500 funcionários e faturamento acima de US$ 10 milhões anuais, identificou que 58% dos entrevistados afirmaram praticar “greenwashing”. Nos EUA esse número alcançou 66%. 93% disseram estar dispostos a relacionar remuneração com metas ESG, mas não sabem como fazer isso. Apenas 17% disseram acompanhar os dados climáticos para uso na revisão das estratégias da organização. 74% concordam que mudanças climáticas podem promover “mudanças poderosas nos negócios”. Outro estudo, que deu suporte para União Europeia iniciar plano para evitar práticas de “greenwashing”, identificou que 53% das declarações em relatórios verdes publicados pelas empresas, em 2022, são errôneas ou infundadas. Se, como diz o pentateuco hebraico, “as coisas reveladas pertencem a nós”, há um trabalho relevante a ser feito, inclusive em nível regulatório, a partir desses sinais. ESG tem o potencial de ser mais oportunidade do que mera mitigação de risco, desde que bem gerida. A informação que sai de dentro para fora da organização deve dar conta da avaliação que virá de fora para dentro. A responsável – e desejada - atração de capitais dependerá disso.

Cresce o número de instituições independentes, como o New Climate Institute, que avalia o nível de integridade dos relatórios das empresas sobre seus planos, ações e indicadores no processo de transição. É preciso destacar o mérito das empresas que prestam contas, mesmo que ainda haja muito por fazer. O conforto da omissão desestimula a consciência crítica e o aperfeiçoamento. Mesmo aquelas classificadas como de baixa integridade, como a JBS e Carrefour, dão sinais de vitalidade. Se expor não é emoliente, mas o caminho para o aprimoramento.

Empresas têm realizado, ao longo do tempo, seus movimentos de revisão das estratégias dando destaque para pauta verde. Três pilares sobressaem: impactos das políticas climáticas nos negócios, novas tecnologias para transição e fontes de financiamento público e privadas. Os resultados nesse caminho – de um estado para o outro – têm se mostrado fator relevante na tomada de decisão dos investidores. A Maersk, conglomerado de negócios dinamarquês, vem reposicionando sua atuação e tem apresentado os melhores índices de avaliação, segundo apuração do New Climate Institute. Ela se desfez de suas operações na extração de combustível fóssil, vislumbrando outro futuro na geração de energia. Trata-se de um dos vários exemplos em que a transição é um processo, devidamente discutido com os seus acionistas, dentro da visão que ser estratégico é antecipar o futuro. Há metas, ano a ano, para que suas soluções de serviços sejam 100% verdes para os clientes, além de net zero nas operações.

A ESG como ferramenta de reorganização da empresa deve ter, na transição para economia de baixo carbono, o seu ponto de corte, entre aquilo que é essencial e o periférico. Relatórios extensos, que acumulam ações desencontradas, denunciam muito mais do que pretensamente desejam revelar. Quantidade nunca foi sinônimo de qualidade. Identificar luz e sombra é preciso para ESG ganhar fôlego. A análise de integridade dos relatórios das empresas deve ter por objetivo salvá-la de si mesma, convertê-la a realidade e ajudá-la a assumir o seu papel na construção de valor.

Há dez práticas que servem como termômetro do nível de evolução das empresas na transição para economia de baixo carbono:

  1. Governança sólida para transição, articulando áreas para construção de soluções, tomada de decisão e avaliação de resultados;
  2. Estabelecimento de metas e compromissos para transição com divulgação de guidance específico ao mercado;
  3. Qualificação da cadeia produtiva no preparo para transição de todo o sistema de produção;
  4. Comitê de assessoramento ao Conselho de Administração com técnicos reconhecidos pelo mercado na área de negócios e ambiental;
  5. Uso da IA (Inteligência Artificial) no entendimento dos impactos nos negócios em função das mudanças climáticas, ampliando também o padrão de soluções implementadas na produção e oferta de serviços;
  6. Divulgações financeiras específicas relacionando suas operações ao tema da mudança climática, mostrando de forma clara a performance;
  7. Item orçamentário específico para implementação da transição – investimentos e reorganização da produção;
  8. Ferramenta de avaliação dos altos executivos levando em conta o processo de transição, inclusive dos membros do Conselho de Administração;
  9. Metas na estratégia de transição com efeitos na remuneração variável dos executivos;
  10. Manual de práticas ambientais e revisão dos planos de negócios em função da estratégia de transição para economia de baixo carbono.

No seu discurso de posse, a ministra Marina Silva destacou que “nestes momentos de tantos desafios, devemos unir a palavra à ação.” Afinal, a palavra sem ação é morta. Toda ação se realiza no tempo e espaço da nossa existência. A qualidade desse mesmo tempo e espaço se dará em função da virtude presente em nossa ação. Quanto maior nossa virtude, menos frágeis seremos diante de variáveis que não controlamos. Os efeitos das mudanças climáticas, a partir dos alertas da ciência, não são mais fortuna, sorte ou azar, mas demandam a virtude na construção de respostas. Pesquisa realizada, em 2022, pela EY Consulting aponta que, para 78% dos investidores, os investimentos em ESG devem ser realizados, mesmo com a redução do lucro no curto prazo. No entanto, 76% dos investidores afirmaram que não estão seguros com as informações em ESG prestadas pelas empresas. Os sinais estão dados. Como nos alerta a doutrina Keynesiana, “a maior dificuldade não está em aceitar ideias novas, mas escapar de antigas práticas.”

* Texto originalmente publicado no caderno Prática ESG, do jornal Valor Econômico