“A grande dívida dos conselhos no Brasil é racial”, diz Ana Silvia Matte
Por Juliana Schincariol para Infomoney
Em entrevista à coluna, conselheira da Eletrobras fala sobre acesso desigual à governança, políticas de diversidade e o desafio de tornar as seleções mais técnicas e inclusivas.
A experiência de mais de três décadas como executiva, especialmente nas áreas de capital humano, levou Ana Silvia Matte a ocupar assentos em conselhos como os da Norte Energia e Eletrobras, para o qual foi eleita no final de abril. Mas o caminho até esses espaços não foi simples.
Os primeiros assentos vieram de empresas ligadas ao Estado de Minas Gerais, e uma mudança de governo rapidamente redesenhou o cenário.
Com sua formação sólida e a bagagem acumulada ao longo da carreira, Ana Silvia passou a atuar também em outros conselhos e comitês de empresas como Vale, Copel e Sabesp. Hoje, com certificações pelo IBGC e INSEAD, a conselheira defende que a diversidade nos conselhos passa por processos de escolha mais técnicos e transparentes.
Pela primeira vez, declarou-se publicamente como integrante da comunidade LGBTQIAPN+ ao se candidatar ao conselho da Eletrobras, para atender ao Anexo ASG da B3. Mesmo assim, Ana Silvia acredita que a maior dívida da governança no Brasil é racial.
“Ainda há pouquíssimas pessoas negras nos conselhos. Isso precisa mudar com urgência.” Sem se ver como militante, atua como mentora de mulheres pretas e reconhece: “Tive o privilégio de aprender com líderes como Maria Silvia Bastos. Isso me transformou."
Confira os principais trechos das respostas da executiva para a coluna:
Como se tornar conselheiro
Achei que a carreira de conselheira iria fluir naturalmente como a de executiva, mas estava redondamente enganada.
Quando mudou o governo de Minas (Ana Silvia tinha assentos em empresas como Cemig e Renova Energia), me deparei sem nenhum assento. Um conselheiro indicado por um sócio controlador tem menos empregabilidade do que os independentes. O conselheiro tem que defender os interesses de empresas, não importa qual acionista tenha indicado.
Eu já sabia que para ir para conselho tinha que ter independência financeira. Trabalho em conselhos porque gosto e não porque preciso. Há casos de conselheiros profissionais que têm honorários dos conselhos para sua sobrevivência e isso acaba de alguma forma atrapalhando.
Em 2017, quando a Maria Silvia Bastos criou um banco de conselheiros independentes do BNDESPar, fui indicada para o comitê de pessoas e governança da Vale.
Cultura organizacional
Uma mudança importante nas organizações aconteceu com a pandemia da Covid-19. O tema da cultura das empresas passou a ser uma das preocupações dos conselhos, como a saúde mental, por exemplo.
Outro ponto importante é que uma empresa precisa estar o tempo todo ouvindo as pessoas. Uma pesquisa de clima organizacional tornou-se inócua, as conversas precisam ser semanais para entender o que as pessoas estão ansiando. A cultura tem que ser “walk the talk”.
Na Eletrobras, por exemplo, um gestor é líder 24 por 7 e isso não significa trabalhar o tempo todo. Mas quando ele vai ao supermercado ou à praia, ele precisa pregar os valores da empresa. Se deixar o lixo na praia, alguém pode tirar uma foto e publicar nas redes sociais. Para uma cultura humana e inclusiva, é necessário ter empatia com pessoas que não pensam como eu.
Isso não é tão simples num mundo polarizado. A liderança precisa entender que o propósito da empresa é cuidar do planeta, das comunidades e das pessoas e todo mundo vai crescer juntos. A sociedade é plural, as novas gerações entendem o pluralismo, a diversidade. Não pode mais ter nenhum tipo de espaço para preconceito. A mudança é por aí.
Certificação de conselheiros
Quando falamos em diversidade, precisamos lembrar da diversidade de competências. No mundo corporativo, um conselheiro tem que ter formação mais generalizada. Apesar de não ser uma unanimidade entre conselheiros, eu entendo que é preciso ter um preparo acadêmico para ocupar um assento em conselhos.
Até porque hoje existe uma aspiração de jovens de 35 anos ávidos por entrar em conselhos. Estar em conselhos pro bono é uma forma de conhecer como é a dinâmica de um conselho, uma forma de começar na profissão. O primeiro conselho é sempre o mais difícil.
Seleção profissional para 'boards'
Já ouvi de um headhunter que 90% das posições de conselheiros são preenchidas por indicações dos controladores, mas vejo que isso está mudando lentamente. Eu acredito que as empresas deveriam partir para esse caminho.
Um diretor financeiro, por exemplo, não é contratado somente por indicação, em qualquer posição executiva as empresas fazem a seleção por meio de um headhunter. Isso traz uma densidade maior para o processo de escolha, ajuda a entender melhor o perfil do candidato.
Retrocessos nas políticas de diversidade, equidade e inclusão
As sociedades precisam encarar os retrocessos como desafios. Assisti a uma palestra de Tânia Cosentino [executiva da Microsoft, que presidiu a operação no Brasil] que lembrou que a Microsoft foi precursora das ações de DEI e hoje possui 40% das mulheres posições gerenciais preenchidas por mulheres.
Isso já entrou no DNA da empresa, por isso acredito que essa situação é temporária e um decreto não vai conseguir acabar com isso. Os clientes precisam se ver representados nas empresas.
No Brasil, não estamos observando a influência das ações de Donald Trump. No processo de eleição do conselho da Eletrobras, ISS e Glass Lewis [empresas de recomendação de voto] apontaram a questão de ter mulheres no conselho e ainda dão valor para isso.
Eu, pela primeira vez, me declarei integrante da comunidade LGBTIQA+ para atender o anexo ASG da B3, e entrei como representante minorizada [para atender o documento, as empresas devem eleger, até 2025, pelo menos uma mulher e um integrante de comunidade sub-representada – pessoas pretas, pardas, indígenas, LGBTQIA+ ou com deficiência – para seus conselhos de administração ou diretorias estatutárias]. É uma luta bem complexa e uma mudança muito longa.
Importância da diversidade nas companhias
Um grupo diverso sempre vai ter diferentes formas de pensar. Alguém que passou por preconceitos ou dores familiares, por exemplo, tende a entender melhor os outros, possui uma couraça um pouco mais forte.
Eu não sou militante nesta área, o máximo que eu tive recentemente foi uma mulher trans como mentorada Eu acho que é uma questão que pode agregar sim, mas sinceramente acho que a grande dívida no Brasil é a falta de pessoas negras em conselhos, é um percentual muito baixo.
O próximo levantamento que vai analisar diversidade nas empresas, certamente mostrará muito mais representantes LGBTIQA+ do que negros. Essa é uma dívida que precisamos alterar com uma velocidade enorme.